INTRODUÇÃO

KOFI A. ANNAN
Prémio Nobel da Paz e antigo secretário-geral da ONU
(1997-2006)

Depois vieram buscar os judeus e eu não disse nada – porque eu não era judeu
Depois vieram buscar-me – mas já não havia ninguém para falar.

Estas são as últimas linhas de um famoso poema de Michael Niemöller, que levaram muitos de nós a fazer as perguntas mais perspicazes.

Algumas pessoas, no entanto, não só falaram como também agiram de acordo com as suas crenças. Quando Raoul Wallenberg deixou o seu país natal, a Suécia, em julho de 1944, para desempenhar uma missão diplomática temporária, em Budapeste, tinha 32 anos e era um empresário relativamente desconhecido em Estocolmo.

Quem o conhecia apreciava a sua criatividade, sentido de humor, energia incessante e soberbas capacidades de organização. Mas ninguém imaginava que se tornaria um herói internacional. Hoje, é homenageado em todo o mundo pela sua coragem e pelos seus feitos históricos, porque as suas ações em Budapeste, no outono de 1944, salvaram a vida de milhares de judeus húngaros.

É por isso que Wallenberg é uma figura tão importante para todos nós, sobretudo hoje, quando a intolerância volta a projetar a sua imensa sombra sobre todo o mundo. Demonstrou que todos – independentemente da posição e da capacidade – podemos fazer a diferença. Mostrou-nos que a luta pela igualdade entre os homens não pode ser deixada apenas aos governos ou à teoria política. Wallenberg entendeu que se trata de uma responsabilidade individual e agiu em conformidade.

Insatisfeito com belas palavras ou gestos, procurava resultados concretos, alcançados pela organização e engenho. Onde outros recuaram diante do impossível, ele viu um desafio e entrou em ação. Respondeu à burocrática máquina de matar nazi criando uma das organizações de resgate mais eficazes da Segunda Guerra Mundial.

No final de 1944, quando a sangrenta anarquia do terror paralisou Budapeste, Wallenberg empregava centenas de pessoas, em várias localizações, oferecendo uma ampla gama de serviços, desde abrigo, rações diárias de comida e cuidados médicos, a documentos de proteção e patrulhas de segurança. O título e a posição de Raoul Wallenberg, como diplomata sueco, eram evidentemente importantes, mas foi a sua autoridade pessoal, a sua energia e iniciativa que fizeram a diferença. Nem sempre foi bem-sucedido nos seus esforços de resgate, mas nunca deixou de tentar.

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso novo canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

Saiba mais sobre o livro e o autor aqui.

Em janeiro de 1945, o Exército Vermelho chegou a Budapeste e Wallenberg contactou voluntariamente a liderança soviética. Queria propor colaboração para salvar os judeus de Budapeste e oferecer ajuda no pós-guerra. Responderam prendendo-o e encarcerando-o na prisão de Lubyanka, em Moscovo. Wallenberg nunca mais viu a sua pátria. O homem que desafiou um dos piores regimes da história, o Estado nazi alemão, foi vítima de outro, a URSS de Estaline. No final, quando precisou de ajuda, não havia ninguém para falar e agir para o libertar. Esta premiada biografia apresenta, pela primeira vez, a história completa de Raoul Wallenberg – a sua vida até 1944, as atividades em Budapeste e o trágico mistério do seu desaparecimento, que permanece, até hoje, por desvendar. É uma leitura absorvente. A meticulosa investigação de Ingrid Carlberg dá vida a esse período e aprofunda a nossa compreensão do homem e das suas realizações.

Em 1981, Wallenberg foi a segunda pessoa do mundo a tornar-se cidadão honorário dos Estados Unidos da América, depois de Winston Churchill. Também é cidadão honorário de Israel, do Canadá e da Austrália. Nomeado «Justo entre as Nações» pelo Estado de Israel, no verão de 2014, foi agraciado com a Medalha de Ouro do Congresso dos EUA pela sua conduta heroica durante o Holocausto.

Wallenberg recebeu merecidamente a sua quota-parte de reconhecimento internacional. Mas é imperativo não o reduzir à glória abstrata dos prémios e das honrarias. Ele próprio nunca se teria sentido confortável no papel de herói. A melhor maneira de o homenagear é recordando-o como um ser humano que, num dos períodos mais negros da História, encontrou a força interior e a coragem para agir e salvar os outros, sem olhar ao risco que corria a sua própria vida. O exemplo de Raoul deve continuar a inspirar-nos a nós e às gerações futuras. Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha nascido do horror da guerra, Raoul já agia segundo o espírito do seu primeiro artigo: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade (…) e agirão uns para com os outros em espírito de fraternidade.»

Devemos lembrar-nos de que o genocídio começa com a humilhação de um homem, não por causa do que fez, mas por causa de quem é. Que o exemplo de Raoul também nos guie no nosso dia a dia e nos ajude a enfrentar a injustiça, em todas as suas formas. Que nunca sejamos espectadores passivos, onde quer que haja indivíduos que sejam evitados, humilhados ou magoados por serem diferentes, bodes expiatórios no trabalho, intimidados na escola ou vilipendiados no
ciberespaço.

Raoul Wallenberg é uma das figuras mais inspiradoras do século XX.

Esta é a sua história.

Kofi A. Annan

(escrito antes de morrer a 18-8-2018, aos 80 anos, em Berna, na Suíça)

PRÓLOGO

DJURSHOLM, OUTONO DE 2009

Falámos várias vezes dos soldados de estanho e agora chegaram as caixas. A meia-irmã de Raoul Wallenberg, Nina Lagergren, parece animada quando lhe telefono. Ajudada por um bisneto, dispô-los numa prateleira, na sua cave: os soldados pintados à mão, porta-estandartes e músicos do fabricante de brinquedos E. Heinrichsen, de Nuremberga.

Nina lembra-se das delicadas figuras de estanho do quarto de infância de Raoul, em Riddargatan, em Estocolmo, na década de 1920. O irmão, nove anos mais velho, herdara-os do pai, que morreu antes de Raoul nascer. As 2 mil peças foram embaladas em 85 caixas de madeira ovais. Ocuparam quase um armário inteiro.

Livro: "O Caso Wallenberg"

Autor: Ingrid Carlberg

Editora: Casa das Letras

Data de Lançamento: 14 de maio de 2024

Preço: € 25,90

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

– Tem de vir cá ver – diz-me Nina.

Uns dias depois, vou até Djursholm. Nina Lagergren abre-me a porta vestindo o mais azul dos seus casacos e mostrando o maior dos seus sorrisos. Tiro o meu casaco e dou uma olhadela à coleção de quadros, na parede. Há muitos selos emoldurados, com o retrato do seu irmão. Há o certificado de 1981, quando Raoul Wallenberg recebeu a cidadania honorária dos Estados Unidos, a primeira pessoa a receber este título depois de Winston Churchill. E ali está, claro, um dos milhares de «passaportes de proteção», conhecidos como Schutzpässe, de Budapeste, do outono de 1944.

Este passaporte, em particular, está datado de 20 de agosto de 1944. Era um domingo e Wallenberg estava no seu gabinete, na colina Gellért, em Budapeste, a analisar pilhas de pedidos de judeus húngaros desesperados. Nesse dia, pegou noutro documento pré-impresso, de cor creme, e mandou-o entregar a Judith Kopstein, de 14 anos. A menina parece triste na fotografia a preto e branco que foi carimbada pela legação sueca. Muito provavelmente, este passaporte salvou a vida a Judith. Encontrei o nome dela nas listas de sobreviventes do Holocausto. Mas, depois disso, infelizmente, mais nada. Nina diz que não sabe o que lhe aconteceu.

As escadas para a cave são estreitas e sinuosas. Temos de nos agarrar às paredes para chegarmos lá abaixo inteiras. Dirijo-me automaticamente à sala das caldeiras. É aqui que Nina guarda a arca de Raoul, bem como cartazes de inúmeros protestos em frente à embaixada soviética, em Estocolmo. A arca desperta emoções profundas.

É ali que está guardada a caixa de madeira com os pertences de Raoul que Nina e os seus irmãos receberam, durante a sua perturbadora visita a Moscovo, em 1989.

Depois de 45 anos de silêncio, as autoridades da URSS, claramente afetadas pela vertigem da glasnost, convidaram Nina e o seu irmão, Guy von Dardel4, para uma reunião histórica com o KGB. Entre outras coisas, foi-lhes mostrada a ficha de registo de Raoul, emitida após a sua chegada à prisão de Lubyanka, em Moscovo, a 6 de fevereiro de 1945. A meio da reunião, o vice-presidente do KGB levantou-se e, para choque deles, entregou-lhes a caixa. Tinha o passaporte diplomático do irmão mais velho, a sua agenda de bolso de 1944, o seu caderno de endereços e uma quantidade relativamente avultada de dinheiro em francos suíços e na moeda de guerra húngara, o Pengő. Ou seja, um conjunto dos seus bens, mas nenhuma resposta credível sobre o que realmente aconteceu.

Nina Lagergren tem quase 90 anos. Continua à espera, assim como o resto da família. Agora, vira a chave na fechadura de uma
arrecadação. Faz-me sinal para entrar.

Não há espaço para todos os soldados de estanho de Raoul, mas aquela parada militar não deixa de ser impressionante. Coloridos guerreiros em miniatura, prontos para o ataque. Há chapéus de penas e mosquetes antigos, canhões, tambores e trompetes.

Algures, na década de 1970, a mãe de Raoul, Maj von Dardel, embalou os seus soldados de estanho em duas grandes caixas e depositou-as no Museu Nórdico, em Estocolmo. Mas nos anos 1970 as perguntas sobre Raoul Wallenberg eram quase sempre recebidas com silêncio, numa Suécia intimidada pelos soviéticos. As caixas foram levadas para a área de reservas, ao nível do jardim do museu. E aí ficaram. Passaram-se décadas e ninguém sabia o que acontecera aos soldadinhos. Até agora.

Há uns meses, Nina Lagergren foi contactada por funcionários do museu. Estavam a arrumar coisas antigas, deixadas em depósito, e depararam-se com as caixas de Maj von Dardel. Agora, queriam livrar-se delas, a menos que a família estivesse interessada em doá-las.

Nina levanta um soldadinho de casaco vermelho, com a espingarda erguida, ao ombro. Olha carinhosamente para ele e suspeito que sente o mesmo que eu, que foi um pouco triste que o museu não se interessasse pela coleção. Mas ela nunca diria nada assim.

– Então, não lhes quis dar os soldadinhos de estanho? – pergunto, timidamente.

Nina olha-me com consternação.

– Como é que posso fazer uma coisa dessas? Eles não são meus. São do Raoul.